Os oito anos do governo Lula registraram avanços muito tímidos no enfrentamento do legado da Ditadura Militar dentro das Forças Armadas (FFAA) e fora delas. Quase sempre, os comandos militares impuseram seus pontos de vista, atropelando o direito da sociedade brasileira à memória, à verdade e à justiça, o que conduziu, por exemplo, a um recuo governamental quanto a medidas previstas no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).
No segundo mandato de Lula, o governo efetuou importantes compras de armas, que resultarão, em curto e médio prazo, no reequipamento das FFAA, sem que tenha havido, em contrapartida, qualquer investimento, exigência ou iniciativa importante de democratização das corporações militares.
As FFAA continuam a manter sua ingerência em setores do Estado que já deveriam estar em mãos civis, como o controle do tráfego aéreo e as capitanias dos portos. A Justiça Militar continua superdimensionada, como na época da Ditadura, e ainda persegue civis, caso do defensor de direitos humanos Roberto de Oliveira Monte, que está sendo processado por declarações feitas em debate na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Neste cenário institucional, a carta enviada pela então candidata Dilma Roussef às FFAA sinaliza o desejo de manter o status quo na relação com os militares. No texto, Dilma afirma que a Estratégia Nacional de Defesa, “concebida e colocada em ação no governo do Presidente Lula, deu a devida importância à transformação das Forças Armadas do Brasil, conceito que deve ser compreendido como o seu redimensionamento de acordo com a missão e o seu reequipamento mais adequado às necessidades operacionais do seu emprego”. Ainda segundo a carta, a Estratégia Nacional de Defesa “reuniu aqueles preceitos que visaram envolver todo o País na sua própria defesa, com importante aceitação da população”.
Depois de se propor a “continuar o trabalho bem iniciado e que marchou em cadência uniforme neste profícuos oito anos”, diz que dará continuidade aos três eixos da Estratégia Nacional de Defesa: a reorganização das FFAA; a reestruturação da indústria bélica nacional; e a política de composição dos efetivos militares (que inclui o serviço militar obrigatório, a previdência diferenciada e a garantia de reposições salariais).
Privilégios
Alguns pontos da carta merecem comentário mais detido. O tópico “Política de composição dos efetivos” afirma que o serviço militar obrigatório “reflete o cunho republicano do Brasil”. Ocorre, porém, que em muitas repúblicas o serviço militar não é obrigatório. Nada há, portanto, que atrele a prestação obrigatória de serviço militar pelos jovens às feições republicanas do país. Talvez seja exatamente o contrário.
No mesmo tópico, afirma-se que é “evidente o fato de que o militar tem carreira diferenciada dos demais trabalhadores e, portanto, seu regime previdenciário deve ser distinto” e que o respeito a este direito não será “afrontado”. O tratamento diferencial concedido aos militares remonta ao governo FHC, quando a categoria, para efeitos de remuneração e previdência, foi apartada do funcionalismo público. Ora, muitas carreiras do funcionalismo são diferenciadas. Os privilégios concedidos aos militares, colocando-os acima do funcionalismo público em geral, não contribuem no combate à mentalidade antidemocrática que ainda exerce grande influência nos quartéis.
A carta de Dilma também manifesta a certeza, fundamentada na “história militar contemporânea”, de que as FFAA “estão em perfeita consonância com a Nação” e que o “respeitado profissionalismo militar é forte elemento estruturante e está enraizado em nosso consolidado regime democrático”. O problema desta avaliação é que o profissionalismo, por si só, não assegura o compromisso dos militares com a democracia. Afinal, as instituições militares surgiram para exercer o monopólio da violência, a serviço do Estado e das classes que o controlam. O propalado profissionalismo das FFAA não impediu diversas manifestações dos comandos militares e de oficiais superiores, em variadas ocasiões ao longo dos últimos anos, em defesa do regime militar iniciado em 1964 ou a propósito de questões que não lhes deveriam dizer respeito.
Cipoal
Como vimos, a relação entre o governo Lula e as FFAA foi mal equacionada, ao menos do ponto de vista democrático e popular. Existe, portanto, um cipoal de problemas que Dilma Roussef terá de resolver, sob pena de assistirmos a um prolongamento das distorções herdadas da Ditadura Militar. Apontamos aqui alguns deles:
1) Ministério da Defesa. A consolidação da pasta exige a verdadeira subordinação e unificação dos comandos militares sob a liderança civil. O ministro Jobim agiu como mero porta-voz dos comandos militares ao ameaçar “renúncia coletiva” (dele e dos comandantes) em caso de manutenção do texto original do PNDH-3. Lula errou ao não aceitar a “renúncia coletiva” e ao concordar em mutilar o PNDH-3.
2) Desmilitarização. O controle de tráfego aéreo civil tem de ser desmilitarizado, como já ocorre em quase todos os países. Os controladores militares perseguidos e expurgados da Aeronáutica precisariam ser anistiados e reintegrados. Outros setores do Estado mantidos sem razão pelas FFAA devem passar ao controle civil.
3) Abertura dos arquivos da Ditadura. É inadmissível que o governo continue a bancar a posição dos comandos militares de bloquear o acesso da sociedade aos documentos da repressão política.
4) Punição dos crimes da Ditadura. É assombroso e detestável que a Advocacia Geral da União (AGU) continue sustentando a tese, vitoriosa no Supremo Tribunal Federal, de que os agentes públicos que cometeram crimes a serviço da Ditadura estão anistiados e isentos de punições.
5) Democratização das FFAA. As corporações militares brasileiras são profundamente antidemocráticas. Precisam, portanto, ser reformadas, para que se tornem democráticas. Por outro lado, na atualidade os colégios militares vêm perpetuando os valores conservadores e retrógrados que alicerçam a “ideologia da segurança nacional”, surgida no período ditatorial. Assim, a formação dos militares também deve ser profundamente revista, para que tenham acesso aos valores, princípios e conteúdos historicamente negados pelas FFAA.
Um pedido de desculpas à sociedade brasileira, oficial e formal, pelos crimes de Estado cometidos no período 1964-1985, é parte essencial desse processo de reforma institucional das corporações militares. A tortura deve ser definitivamente banida dos quartéis.
6) Brigada “GLO”? Tudo indica que a presença de tropas brasileiras no Haiti e os exercícios de ocupação de favelas do Rio de Janeiro por contingentes militares constituem um aspecto pouco mencionado da chamada Estratégia Nacional de Defesa: o emprego das FFAA como recurso repressivo contra os movimentos sociais e as camadas mais pobres da população. A criação da Brigada Garantia da Lei e da Ordem (GLO), em Campinas, confirma esses indícios, na medida em que seus soldados são equipados com armas semelhantes às utilizadas pelas tropas de choque da Polícia Militar.
Para encerrar: as FFAA devem ser valorizadas e reequipadas. A carreira militar deve ser respeitada em todos os aspectos, a começar pelos salários. Mas as FFAA não podem colocar-se acima do ordenamento jurídico ou querer, como antes, tutelar a sociedade brasileira. Os militares devem enxergar-se como funcionários públicos, cujo principal dever é servir à população, e sua tarefa é a defesa nacional e o patrulhamento de fronteiras.
Está nas mãos de Dilma, desse modo, ou bem enterrar a Ditadura Militar e remodelar, com viés democratizante, as FFAA, ou bem manter o status quo e com isso dar sobrevida às heranças ditatoriais, com prejuízos e riscos para as liberdades democráticas.
(Texto de Pedro Pomar sob o título “Nós e os militares”)
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